TRIGRAMAS
Quem valoriza a palavra
realiza La obra sem deixar rastro.
Tao Te Ching
Oquidão dos espelhos:
sou todas as que não fui
em uma transfigurada.
Na harmonia plena
das notas da fuga
a viajante se detém.
Despojada do nome
no umbral da morte
se oficia cada renascer.
Nada sei nem me possui.
Exilada no ar
beiro o halo de luz.
O passo primeiro é infinito.
O ponto de partida está no final.
O fim é viagem inacabada.
Para me erguer curvo-me.
Para ser desdobro-me.
Para me recriar volto ao caos.
Quando cria ter nada teve.
Quando perdi me vi sem limites.
Quando parti fiquei no rastro.
Quem dá nome perde a essência.
Quem deixa de amar perde sua luz.
Quem se iguala a sua perda perde o caminho.
ASSIM FALOU EURÍDICE
You hold love in your hand, a red seed
you had forgotten you were holding.
Margaret Atwood
Estou de volta do olvido
meu amor foi fiel no desterro.
Estou em tua memória nítida
porque era teu ser verdadeiro.
Quando me perdeste no inferno
depois de muito andar sem rumo
no frio umbral da desmemória
me acolhi a minha sombra desolada.
Guardei os signos do tempo
aprendi o prazer de ser intacta.
Vesti as sutis roupas do silêncio
e as sandálias aladas da morte.
Por fim regressei com outra forma.
Mariposa negra em jubiloso luto
inumerável semente ao vento.
E como sei que estás dilacerado
te trago estas romãs milagrosas
de meu vivíssimo jardim do fogo.
IMAGEM
Mediadora elusiva
entre este mundo
e os ignotos reinos
atemporal me guia
ao remontar o tempo.
Se a imagino me vejo.
Se me miro está adentro.
Nas encruzilhadas de reflexos
suas formas se desvanecem
e ressurgem novas.
Mora na realidade
do mais exato devaneio.
É água e ar e fogo
que existe terrenal
nos absolutos do sonho.
Pálida Outra e centelha.
Um tanto de Iansã
Seshat que a escreve
Antígona no desejo.
ADIVINHA
Uma tendência irrefreável à desagregação.
Elogio do detalhe.
Precisões erráticas.
Um sistema dúbio de fingimentos e equívocos.
Mãos do manuscrito ininteligível da alma.
Incandescência da pulsão formal.
Figura fulgurante.
Corpo do desejo inesgotável que ama a medida.
Epifania sensual.
Ordem simbólica na explosão dos sentidos.
Um atalho atemporal na sucessão do tempo.
Ato de fé que excede à crença.
Heresia transfigurada em Letra.
Encarnação do que não existe.
O espelho impassível das Cariátides.
A mirada de Medusa no escudo de Atena.
Asterião sem sexo desejante.
Uma quimera guardiã da porta.
A matriz da aranha mátria gigante.
Folha e cálamo incólumes na fogueira.
*
Aimée G. Bolaños (Cuba-Brasil). Leitora e escriba de ficção. Professora, ensaísta, poeta. Doutora em Filosofia. Pós-doutora em Literatura Comparada. A poesia sempre a acompanha, principais livros publicados: El Libro de Maat (2002), Las Otras (Antología mínima del Silencio) (2004), Las palabras viajeras (2010), Escribas (2013), Visiones de mujer con alas (2016), O jogo dos trigramas (2019), Alada viajera. Apócrifos verdaderos (2020), De labirintos e espirais. Sete poetas de Rio Grande (2021), Erótica Medusa (2021) Traduzida a várias línguas, seus poemas aparecem em antologias de ensaio e poesia (México, USA, Canadá, Espanha, Cuba). Dedica-se à poesia de autoria feminina atualmente. Gosta de inventar identidades e vidas imaginárias; também de mergulhar e voar.